segunda-feira, 16 de novembro de 2009

vida real

Ele sabe que ela gosta que lhe tirem fotografias quando está despida. Nua. Os contornos dela são bonitos e ele sabê-lo bem. Porém, nunca lhe ocorreu fazer zoom out sobre o seu corpo e guardá-lo na memória para visitar a seguir. A memória dela custa-lhe. Apoquenta-o. Se acendesse um cigarro na sua boca e lho desse, ele saberia que ela sorria por tão delicado gesto. No entanto, nunca o fez por se distrair das coisas simples. A sensibilidade dela desconcentra-o. Ela gostava depois de tudo e ainda que por perto de dizer-lhe “até amanhã, amor” dando-lhe um beijo na face. Contudo, ele nunca lhe retribuiu esse beijo que a embalaria no sono mais profundo. A delicadeza dela aborrece-o. Não a entende. Ela gostaria de ter ido com ele escolher aquela blusa. Azul. E ele nunca foi com ela escolher coisa alguma. A extravagância dela irrita-o. Na praia ela costuma enrolar-se na areia e ficar tola como as crianças, mas ele nunca foi com ela à praia ver-lhe os cabelos molhados a escorrer pelas costas, as pegadas a deixar marcas, as conchas a empilharem-se na mala. Porque a infantilidade dela esgota-o. Ela gosta de dançar e gosta dos homens que dançam porque só os homens que dançam se entrosam com ela. Apesar disso ele jamais a levou ao baile, à discoteca ou pôs um cd lá em casa. As performances dela traem-no. Ela gostava de pendurar-se ao pescoço dele logo que ele saia do banho. De manhã. De beijar-lhe os olhos fechados e de pedir “preciso de palavras bonitas para o meu dia". Todavia ele afastava-a e ia vestir-se de silêncios. A afectividade dela sufocava-o.

Agora e como sempre ela não lhe diz do que gosta nem espera já que ele adivinhe, porque a frieza dele repele-a. O pragmatismo afasta-a. A aspereza mete-lhe medo.

Já não o procura. Já não o encontra. Já não o chama. No entanto, se o avista ainda que de longe tem vontade de dizer-lhe e diz-lhe “Continuas bonito. Gostei de te ver”.

E ele que até é tímido não baixa os olhos, não cora e nem lhe diz obrigado.

Porque a sinceridade dela cansa-o. Desgasta-o. Assusta-o. Fá-lo pensar que deve dar algo em troca. E agora, de facto, tanta frontalidade não serve para nada. É dispensável. E violenta demais.

E ela sabe também e ao mesmo tempo que não precisava de ser tão real. E pensa: eu sou ficção.

4 comentários:

anademar disse...

Muito bonito! Mesmo. Gostei muito!Que bom descansar os olhos aqui depois de um dia que ainda promete ser longo de documentos chatos e... ai... agora já não interessa nada. Alimentaste-me o outro lado da vida. Fiquei mais quentinha. Obrigada

be(i)ja disse...

Obrigada, Chéri. Às vezs "foge-me a escrita prá verdade", outras para a ficção.

Anónimo disse...

... e que bela ficção....
Bêjos

be(i)ja disse...

Anónimo - Não sei se é assim tão bela. Às vezes estamos mal-dispostos e vomitamos. Esta foi um vómito. Involuntário. Saiu-me. Desculpe.