sexta-feira, 26 de novembro de 2010

baleizão

tenho o sonho de viver numa casa ladeada de seixos, seixos roubados ao Guadiana há muitos, muitos anos atrás. redondinhos, castanhos, cremes, cinzentos. à soleira dessa porta vinham desaguar as correntes do rio para molharmos os pés e de tão fortes que elas eram obrigavam-me a ficar quase eternamente em casa.
essa casa estava na rua principal da aldeia que era o afluente do rio e que desembocava no ponto de encontro de Manuel da Fonseca: o largo.
rodeada também por searas de vento a casa do meu sonho era grande, tinha paredes de tijolo de burro, tectos de madeira, cheirava a pó e a cal e a troncos queimados e a caldos e sopas.
esta casa só poderia existir porque existem aldeias com fortes tradições, raízes, costumes, hábitos, estórias inverosímeis e do demo. esta casa ladeada de pedaços de rio só podia existir ali.
e era nesta casa que eu por força da corrente que é a vida me encontrava de novo no meu habitat natural. nessa casa só era permitida a entrada de seres humanos mesmo humanos, outros não vivos mas imemoráveis, outros ainda imateriais, também efémeros, também etéreos.
e eu nessa casa tinha vários cantos: o canto nono de Camões, o canto dos cisnes, o cante alentejano, o canto celestial, o canto encantado e o canto onde reunia todos os desejos passíveis de se tornarem realidade que o mesmo será chamar-lhe sonhos capazes de rimarem com prazer.
na minha casa ou a partir dela ecoariam muitas músicas e abrir-se-iam as janelas e as cortinas para ela trespassar qual arma apontada em riste para a rua que é o rio, o afluente, o largo, a fonte, a sociedade recreativa, o café, o largo outra vez.
e ainda nessa casa construir-se-ia uma máquina de produzir papel com letras já impressas lá ao fundo na cavalariça depois do poço e da casinha das fezes no quintal. de dentro do meu canto, de dentro dessa casa qual torre de babel, eu tinha que escutar muitas pessoas em surdina, em confissão, em pranto, em brado, em desabafo, gravar tudo no meu gravador e na máquina de filmar do meu avó montada com o tripé que comprei no verão com o subsídio de férias na worten, e depois materializar, dar forma, consistência, ar de coisa, coisa em ares de, palavra atrás de palavra e enviar para a máquina de produzir papel com as letras já impressas.
de vez em quando os duendes deixar-me-iam espreitar a rua quando o rio tivesse caminhado para os lados de lá, eu podia passar as mãos nos seixos, acariciá-los e ver como são macios ainda que expostos todo o dia e toda a noite às intempéries, ver como eles são bonitos quando guardam mesmo que seja só uma casa quais seios de mãe quando guarda seu filhinho. de vez em quando as bruxas convocavam-me para convenções nocturnas debaixo do chupão e a costureirinha chamava-me ao barranco, de vez em quando soava lá longe o enterro do bacalhau ou os tiros do Mais Lindo, de vez em quando entranhavam-se-me nas roupas e no estomâgo as sopas de tomate com os poejos ou os caldos de peixe com a hortelã da ribeira e apertavam-me as goelas e de vez em quando eu ficava sem conseguir falar, dizer, perguntar e sem conseguir fazer mais nada e... de vez em quando tudo me possuía e eu escrevia, escrevia, escrevia...

1 comentário:

Camolas disse...

Escrevias e pelos vistos escreves.
O escrito está lindo!!!