domingo, 29 de agosto de 2010

processos dolorosos

Um dia o meu pai quis aceder aos seus processos da PIDE e dirigiu-se à Torre do Tombo em Lisboa. Esperou bastante até que estivessem disponíveis e quando lhes acedeu ficou por lá a lê-los sozinho emocionado.

Quis conservar o processo junto a si e percebeu que teria que fotocopiá-lo todo, sendo que isso lhe sairia caro. Contudo fê-lo.

Quando chegou a Beja com aquele calhamaço o meu pai explicou-nos onde tinha ido e pediu a cada um de nós que nunca lhe mexêssemos. Até hoje ninguém teve coragem para o fazer e nem sabemos sequer onde está.

O pouco que conhecemos da história do seu passado são pequenas coisas que nos vai revelando. Espantado conta-nos que os pides tinham conversas dele e dos amigos transcritas a partir das mesas da Bambina; que foram interceptadas cartas dele de Paris para Beja para a sua irmã, na altura uma criança – cartas essas que num Natal fotocopiou e deu em mão à minha tia. Sabemos também que o brevet de monomotores não lhe foi atribuido por ser considerado um elemento perigoso para a Pátria. E pronto! Não sabemos mais nada. A não ser que quando fala nisso fica perturbado, por isso não perguntamos muito nem muitas vezes.

Hoje encontrei este texto na internet. É o testemunho de uma senhora que também foi buscar à Torre do Tombo os seus processos da Pide. Transcrevo-o aqui porque suponho que o meu pai tenha sentido algo muito parecido com isto. Peço desculpa pelo facto de não mencionar o nome da autora. Tentarei fazê-lo logo que possível.

“A consulta dos processos individuais da PIDE/DGS na Torre do Tombo pode tornar-se numa verdadeira descida aos infernos ou, no melhor dos casos, numa aventura inquietante. Foi essa, pelo menos, a minha experiência pessoal. Quando, oito meses após o pedido formulado, tive finalmente autorização para consultar o meu processo da PIDE/DGS na Torre do Tombo, não tinha a mínima ideia do que iria encontrar, ou mesmo se iria encontrar algo que me dissesse respeito.
Sentei-me, pois, à espera do que viesse. A funcionária traz-me um processo, abro-o e o primeiro choque é deparar-me com uma fotografia minha ampliada, aos 15 anos e em que eu estou com um sorriso luminoso. A segunda surpresa foi constatar que estava a ser seguida pela PIDE desde os meus 12 anos, quando ainda não tinha qualquer actividade política, nem sequer ainda tinha integrado a Comissão Pró-Associação dos Liceus, o que só aconteceria dois ou tês anos mais tarde. No entanto, já lá estava a correspondência por mim trocada com jovens estrangeiros que conhecera no Parque de Campismo onde passava férias. As cartas, escritas em francês e em inglês, estão bem traduzidas para português, nomeadamente poemas de Aragon e Éluard, enviados pelos meus amigos…Discutiamos sobre a repressão e a falta de liberdade em Portugal; eu estava ainda à vontade para abordar estes temas porque não tinha actividades políticas. É na sequência destas cartas (percebo só então) que um pide vem a minha casa, informa-se junto dos vizinhos e interroga a minha mãe, que lhe diz «Não entendo as suas perguntas, a minha filha é uma criança». Nessa altura eu chego do Liceu, de bata, rabichos e soquettes. O pide fica confuso, não devia esperar encontrar uma miúda e vai-se embora, sem me interrogar, escrevendo um relatório ameno, que está no meu Processo: «É uma menina de boas famílias, vão à missa todos os Domingos; o pai parte àmanhã para o Ultramar…» Lembro-me vagamente deste homem, com aspecto gorduroso, a falar com a minha mãe, à porta de casa; desses meus amigos estrangeiros já nem me lembrava…
Mas fica a questão: como é possível perderem assim tempo a investigar, ler e traduzir cartas longas de uma garota de 12 anos, sem qualquer actividade política na altura? Pode haver como «explicação» o facto de o meu nome de família ser conhecido nos meios oposicionistas: o meu tio-avô, republicano histórico e o meu primo Rui Cabeçadas, então dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional, sediada em Argel. Mas não deixa de ser perturbante esta questão: que quantidade enorme de informadores não seriam precisos para que tal acontecesse?
Neste primeiro processo, para além da fotografia, destas cartas distantes, deste relatório quase anedótico, do meu número de inscrição no Cine Clube Universtário de Lisboa «organização subversiva dominada por comunistas», da prisão na Cantina Universitária em 1965, está a denúncia de pertencer ao PCP pelo controleiro do sector estudantil da altura, passado para a PIDE, e que provocou a prisão em massa de estudantes. Nada que me causasse grande abalo, a não ser a fotografia, que me irritou sobretudo pelo meu sorriso tão alegre, jovem e confiante nas mãos daqueles seres repugnantes. Se eu estivesse com um ar duro acho que não teria ficado tão zangada.
Julguei que era tudo, e quando fui entregar o processo perguntaram-me se não queria ver os outros. Disse que sim, e chegaram então mais três grossos volumes. Explicaram-me que outros três volumes estavam desaparecidos/não localizáveis, mas classificados. Estes que posso consultar são os volumes que correspondem aos anos do exílio, e que se estendem dos meus 17 aos meus 27 anos e é aqui que surgem as cartas aos/dos meus familiares, amigos, namorados. Constato então que ao longo de dez anos a minha vida íntima, assim como a dos meus familiares e amigos, foi devassada de forma totalmente despudorada. Há em muitas destas cartas comentários obscenos feitos à margem pelos pides (ex.«esta gaja é do tipo galdério», a propósito de uma certa rapariga), setas com os números dos processos na PIDE das pessoas referenciadas, algumas com múltiplas setas correspondentes a múltiplos processos, e as que não tinham processo aberto passavam a tê-lo pelo simples facto de serem nomeadas: «Abra-se processo» era a ordem expressa na seta correspondente, já com o novo número atribuído.
Algumas destas cartas são as originais, o que significa que nunca as recebi ou nunca foram recebidas pelos seus destinatários; outras eram fotocópias de cartas que seguiram o seu destino depois de lidas pelos pides ou que estarão incluídas noutros processos, outras cartas ainda estão escritas à máquina, o que me deixou intrigada: porquê perder tempo a escrever estas cartas à máquina, tão longas, com tantas páginas? Sairiam as fotocópias mais caras do que pagar a dactilógrafos/as que as decifrem? Mais uma vez se põe a questão inquietante da imensidade de colaboradores necessariamente envolvidos nestas actividades pidescas. É o caso da carta, que nunca recebi, de uma das minhas grandes amigas, em que que ela me fala apaixonadamente da sua descoberta do amor; é uma carta muito bela, intensa e luminosa, daquelas que só se escrevem quando se tem 18 anos…Os comentários abjectos dos pides causam-me náuseas. Faço uma fotocópia da carta e pergunto à minha amiga porque é que me tinha escrito à máquina. Ela ficou muito admirada: «nunca te escrevi nenhuma carta à máquina; de facto, estranhei nunca me teres respondido a esta carta, mas pensei que estavas ocupada com outras coisas, que tinhas mais em que pensar…» assim se criavam mal-entendidos, falhas de comunicação, quando não mesmo rupturas afectivas com consequências irreparáveis e dramáticas.
Eu estava preparada psicologicamente (penso) para ler dados relativos a denúncias, interrogatórios, etc. Mas não estava, de modo algum, preparada para esta devassa despudorada da minha intimidade e da dos meus familiares, amigos, namorados…Era uma época em que se escreviam longas cartas – é bom recordar que não havia telemóveis nem internet – telefonar e/ou viajar era caro e pouco acessível – a solidão do exílio exacerbava a necessidade de comunicação à distância com os amigos e a família. Evitávamos falar de política nas cartas, claro, pois sabíamos que a correspondência era vigiada, mas sobre os afecto e os sentimentos escrevíamos sem restrições, para não perdermos as raízes e não nos perdermos a nós próprios – era uma necessidade vital.
Ver assim expostos aos olhares dos pides os sonhos, amores, frustrações e angústias das pessoas que me eram mais queridas, algumas das quais já desaparecidas, causou-me um mal-estar profundo e uma indignação que ainda hoje sinto dificuldade em dominar. Senti-me roubada, violentada no que de mais íntimo e secreto havia em mim.
O que constava nos processos, para além das cartas pessoais, incomodou-me menos: relatórios de pides belgas, redigidos em francês, denunciando as actividades anti-fascistas de portugueses exilados na Bélgica, um relatório da Interpol…sugestivo da ligação (inquietante) entre as polícias internacionais e a PIDE; outras pequenas/grandes denúncias que não me surpreenderam verdadeiramente.
Ao entregar os processos à funcionária da Torre do Tombo perguntei-lhe porque tinha sido necessário esperar oito meses para os poder consultar. «Porque tivemos que fazer o expurgo», foi a resposta. «O que é isso?» perguntei. «É tapar os nomes dos informadores». «Mas com que objectivo?» indaguei, «Porque tem de ser» foi a resposta burocrática. Fiquei atónita e ainda mais revoltada. Porquê esta protecção aos denunciantes? Imagino que para «proteger» a podre paz social em que vivemos.
Quando, finalmente, saí para o ar livre, tinha a sensação de que se me colara à pele algo de viscoso e repugnante. Passei pela Biblioteca Nacional e vi que estava lá uma exposição sobre a vida do humanista Damião de Góis. Entrei e confrontei-me com o seu processo da inquisição e com os interrogatórios que lhe foram feitos: a linguagem dos inquisidores é semelhante à dos pides, as acusações são idênticas, o espírito é o mesmo. Constato a perturbante continuidade de uma História que, em Portugal, ao longo dos séculos, se foi fazendo recorrendo à tortura, à denúncia, à prisão arbitrária e à humilhação sistemática. Tento consolar-me com a convicção de que também se fez com a resistência daqueles que conseguiram, nestes períodos sombrios, ter a coragem de dizer não à violência e à barbárie”.

2 comentários:

anademar disse...

é um grande testemunho, um testemunho muito sentido de uma violação que só podemos imaginar o que seja.

be(i)ja disse...

é verdade chéri. nós nem fazemos ideia do que eram aqueles tempos difíceis.