domingo, 6 de junho de 2010

Baleizão, mulheres, homens, aniversário da morte de Catarina, Graça, Álvaro e tantos outros sem nome e vistos da janela

Naqueles dias o trânsito era cortado na aldeia nova até cá abaixo à aldeia velha. Álvaro Cunhal saia do automóvel, Graça saia da Igreja. Ambos os venerados desciam a rua ladeados por populares. Ruas caiadas de branco imaculado e propositado. Ruas limpas e regadas na véspera. Desciam em marcha lenta. Ela assente no altar e erguida por braços tímidos, ele assente na coragem e como que transportado por braços fortes em levitação. Nenhum deles se movia conforme as leis da física pé ante pé, um atrás do outro arrastados pelo movimento lento da marcha. Os santos são etéreos e há sempre alguém que os conduz aos lugares onde estão e onde querem que vão. Em ambos os casos quem os levava era o povo. Caras lavadas, roupas estreadas, vozes contentes e eufóricas, cânticos e cantigas e modas entoados a puxar a esperança de uma vida melhor. Álvaro e Graça prometiam sempre futuro, coisa que não está às mãos de qualquer um e pelo qual é sempre preciso esperar. Futuro de uma vida em comunhão, camaradagem, paz, trabalho. Por conta disso todos queriam tocar-lhes. Nela com mais esmero, delicadeza e prece. Nele com força, abraços, apertos de mão rijas.
Eram dias de festa na aldeia. Instalava-se uma confusão organizada. Vinha gente de fora, dos sítios longínquos para onde foram empurrados à custa da custosa emigração. Das Suíças, das Alemanhas, das Franças. De todo o país. Acreditavam num destino melhor, maior, supremo. Menos sofrido.
Instalavam-se barracas na rua. De vendedores de gelados de dois sabores, de tremoços, de algodão doce, de pães com linguiça. Fechava-se o comércio e as tabernas. Engalanavam-se as janelas.
E, num caso como noutro, gritavam-se palavras de ordem fossem elas alto e bom som e de punho erguido, fossem elas murmuradas de olhos baixos assentes nas mãos enleadas nos crucifixos.
A peregrinação terminava no largo da aldeia e se Álvaro subia à tribuna para discursar, Graça a Nossa (ou deles) Senhora, padroeira da terra subia novamente ao altar. Quem está acima de nós deve sempre estar elevado para que possamos vê-lo e venerá-lo melhor.

Eu via-os primeiro em Maio, depois em Agosto. Via-os da perspectiva de uma criança de 5, 6, 7 ou mais anos. E sempre da janela. A passar. Via-os assim. Como dois motivos de festa.

Hoje interrogo-me porque tais memórias me assaltam e sinto que não conseguir explicar porque razões os meus conterrâneos se entregavam, como nenhum outro povo, à celebração daquilo que é relativo a um domínio interdito e inviolável e que suscita a veneração, o sagrado, no caso a Nossa Senhora da Graça que enchiam de notas para pagar preces e promessas, ao mesmo tempo que o faziam com o profano, Cunhal que eles próprios investiam de uma determinada dignidade religiosa, tornando-o bendito, abençoado e quase santificado.
E pergunto-me porque transformaram os baleizoeiros sempre o pão e o vinho dos seus camaradas no Corpo de Cristo?

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