domingo, 31 de maio de 2009

Louis Stone. Centenário sui generis



De cada vez que telefona para combinarmos o que quer que seja acabamos irremediavelmente por ir ali parar. Telefonamos, trocamos sms’s e responde – previsivelmente – Luís da Rocha.
Um dia irei perguntar-lhe muito directamente porquê? Mas temo que tanta assertividade possa colocar em causa este eminente namoro. Já aprendi com a idade que há coisas que não se discutem, não é assim? Estivera ela já rendida aos meus encantos e eu logo lhe dizia onde é que íamos…
Que graça haverá de namorar num sítio onde empregados nos tratam como se fôramos invisíveis? Eu só queria uma meia de leite, uma torrada e um Sg Ventil, caramba! E sou obrigado a esperar até quase o estômago se me colar às costas porque o senhor que passou “não é desta ala”. O senhor que passou só atende as mesas do lado de lá. Ok! Aguardo.
Ela já tinha comido porque eu – como sempre - atraso-me. Um defeito que já me desculpa, condescendentemente!
O pires do seu mil-folhas repousava ali, ali ficou, o copo e o pires do seu galão repousavam ali, ali ficaram, a chávena do seu café repousava ali, ali ficou! Eu, por acaso até tinha “A Bola” escancarada que ontem foi dia grande para o meu Glorioso e eis senão quando o desprezo por tamanha ousadia perpassou no olhar fulminante do empregado da “minha ala” como que a dizer “onde é que já se viu ler jornal num círculo de 20 cm de diâmetro, então não se sabe que enquanto se come não se lê”? a sua mãezinha não lhe ensinou?”.
Estava eu perdido a adivinhar os pensamentos do meu interlocutor e ele a desesperar com a bandeja na mão. Não fora ela com seus gestos delicados a encavalitar tanta porcelana e eu não teria espaço na mesa para comer.
Finda a comezaina há que tabaquear o caso (a única coisa boa que ainda ali não chegou: a ditadura dos não fumadores) e eis que me apercebo que o incauto homem havia esquecido o maço do Sg.
Não, não fora esquecimento esclarece prontamente o senhor “da minha ala”. O tabaco só se vende ao balcão, acrescenta. Hum! Levantei-me, claro, e lá fui. Pedi para por na conta! Pagaria tudo junto, pois não dispunha ali de trocos. Que disparate! O que eu fui dizer! Não se fazem cá misturas! Leva o tabaco tem que pagar logo!
Querida tens aí uns trocos, preciso de comprar um ventil? Assunto encerrado. Havíamos de acertar essas com outras contas!
Ela tinha coisas a fazer. Faltava pouco mais de meia hora para o fecho das lojas e tinha que ter tempo para escolher o presente. Quanto a mim devia acompanhá-la em tão difícil tarefa! Ok, que alívio! Vamos! O melhor é beber o café num instante. Do outro lado, querido, avisa-me docemente. Ah! Pois sim, do outro lado! Um café, de pé, a despachar, do outro lado. Pronto! Já está! Mas eis que me ocorre uma belíssima ideia que isto de flertar uma moça da província tem destas coisas! É preciso agradar-lhe dez vezes mais que a uma tipa normal… Porque não havemos de levar também uns bolinhos? Tu dás o presente e eu levo uns bolos. Cai sempre bem, acrescentei. Ela anuiu e eu marquei pontos (que bem percebi pelo sorriso que me esboçou).
É então que, pronto a ser gentil e a carregar com carradas de parisienses, pastéis de nata, queijadas e afins, o simpático empregado me conduz, num aceno cortante “ali, se faz favor, no outro lado”. Claro! No outro lado, no outro balcão. É óbvio! Só mesmo um lisboeta distraído como eu não saberia uma coisa destas! Os bolos compram-se no balcão dos sg’s e dos marlboros, dos chupas e das pastilhas.
É evidente que na ala “dos cafés de pé” há comestíveis! Mas empadas e pasteis de carne, claro! Agora bolos! Só mesmo eu distraído como sou não reparei que esta ala, a terceira desta imensidão de café, é a ala dos senhores apressados do café matinal. Dos senhores que abrem cedo a farmácia, a loja dos totolotos, a barbearia, o supermercado. Dos senhores da Caixa Geral de Depósitos, homens de outra geração, mais engravatada e apressada. Também é verdade que nesta ala paira outra “fauna”, mas essa pouco ou nada interfere no negócio. Não precisam de comer. Refiro-me, claro, àquele grupo de ociosos que por ali se arrastam, desprezados, agarrados a outras substâncias de que uma grama diária basta para lhe preencher mais o estômago e a alma que toda a produção do dito café. Estão ali por uma questão de hierarquia social ditada pelo ostracismo e pela hostilidade. Nem todos podemos estar na montra e há coisas que não são dignas de mostrar!
Bom, então lá vou comprar os bolinhos do outro lado. Do outro lado, o tal que é dividido pelos empregados numa e noutra ala, é onde se sentam os estrangeiros, os grupos de senhores bem parecidos, os médicos da terra, os advogados da terra, os senhores professores da terra, as donas das lojas chiques, as senhoras empresárias da terra. Só mesmo um tipo distraído como eu e habituado a lisboas angolanas, moçambicanas e a outras áfricas, um gajo anestesiado pelo stress da metróple que pensa que viu de tudo em metros e autocarros colonizados e onde todos se misturam sem rei nem roque é que não percebe que cada um tem os seus lugares no mundo, na sociedade e, claro, no café. Nada de confusões.
Do outro lado, dizia eu, que era onde ela me havia esperado, sentam-se também os estetas como eu, os diletantes, os artistas e pseudos.
Então e não é que se reparar bem outros tantos há que também lêem jornais. Claro! Apenas pagaram logo depois de comer e tiveram, por isso, direito a que lhe levantassem a colecção de chávenas e pires. Lindos meninos! Paparam tudo, agora já podem ir brincar! Todos os dias recebemos lições e eu tão distraído!
Deste lado, dos bolos e das duas alas, há também os chamados tabuados – para empregar uma linguagem tauromáquica. É aí que está a geração de ouro. Os que de tanto tempo lhes sobrar discutem com a maior das seriedades temas muito importantes, porque os há ali entendidos para cada uma das áreas: da agricultura, ao ambiente, dos transportes à saúde, da economia, à guerra. São os homens das tertúlias políticas, quais vencidos da vida, a antever o pior futuro para o país. Não há barragem, aeroporto e porto marítimo que lhe escape ou não fossem as infra-estruturas da região, ou falta delas, que os empurrou tão cedo para aquela condição de reformados, agora convertidos em reformadores sem pasquim onde editar ideias e propostas tão boas que todos os dias lhe ocorrem.
Não muito longe, os treinadores de bancada, cada qual representante de um dos grandes clubes da bela pátria discutem foras de jogo, expulsões, derbys, assembleias gerais extraordinárias, alienações de património dos clubes e das mulheres divorciadas a quem também medem a altura da saia. É ali que elas estão só para beber a bica da hora do almoço, é ali que estão alguns moços a desfrutar de um adolescente lanche. É ali que descansa quem - em vésperas de festa na aldeia - se abasteceu aos Armazéns Zé Graça. É ali que as moçoilas do cabeleireiro vão – ainda com as batas brancas da kerástace – tardiamente almoçar uma sandes e um café.
E eu para aqui a queixar-me do atendimento, da profusão de balcões, de normas e regras indizíveis e que não estão escritas em lado nenhum. De facto, só um gajo distraído como eu é que não percebe a beleza que há em certas coisas!
Qualquer dia estão a editar folhetos promocionais, a vender merchandising, a enviar convites para as agências de turismo, a incluir a morada e o contacto do Luís da Rocha em roteiros turísticos. Qualquer dia invadem as salas e as alas, começam com softwares modernos para registar os pedidos, arrancam os azulejos e os candeeiros art noveau e aprecem com espelhos da delta, inventam regras de hotelaria, assoma-lhe o marketing à porta giratória e estragam o café da minha moça.

Quando eu a levar a Lisboa, não sei onde havemos de ir. Queria surpreende-la tanto como ela a mim marcando encontros num Luís da Rocha qualquer. Um sítio que tivesse montra para a baixa, limonada caseira, esplanada no Verão. Não tinha que ser tão moderno, só teria que ter uns empregados centenários, uns costumes em desuso, umas regras que só eu soubesse decifrar e, claro, várias alas. Só para a surpreender! Tinha que ser, assim, muito cosmopolita, poliglota, democrático! Mas…não há em Lisboa um sítio tão especial como este!

5 comentários:

Fairwind disse...

Simples é levá-la a Pastelaria Suíça que fica bem na baixa de Lisboa, e até pode escolher a esplanada do Lado do Rossio ou da Praça da Figueira...(deduzo que continue a ter 2 esplanadas, há séculos que não lá passo).

be(i)ja disse...

Muito obrigada. É muito mais criativo que o meu personagem.

Anónimo disse...

Fantástica imagem!

be(i)ja disse...

Mad - Obrigada. Adoro o Luís da Rocha e acho-o prenhe de idiossincrasias.

Anónimo disse...

Ah,ah,ah...é a descrição perfeita do nosso Luíz da Rocha, sem qualquer sombra de dúvida!!