Corriam os dias monótonos em Paris emigrado por razões políticas desde 1967. Estávamos em 1974 já tinha perdido toda a esperança de voltar a Portugal.
Uma série de factos irromperam na minha vida aos 19 anos: a iminência de ser forçado a colaborar, dentro em breve, nessa farsa que era a guerra colonial e a proibição pela Pide de me entreguar o brevet de piloto aviador de monomotores em cujo exame final tinha obtido sucesso.
Estes factos e o exílio forçado de alguns dos meus amigos, fruto da luta política, fizeram com que a única saída que se me afigurava como possível, para o meu futuro, fosse abandonar o meu país, familia, amigos e projectos. Mas eu acho que já sabia desde sempre que esse ia ser o meu destino assim que se aproximasse a idade de ir para a guerra colonial. As noites a ouvir rádios que emitiam para Portugal enchiam-nos de ódio ao ditador e recreavam os nossos sonhos de um país imaginário sem censura, sem guerra, com pão, com liberdade. A burla das eleições de 1958 que apesar dos meus onze anos vivera intensamente, por força das posições democráticas do meu pai, e a prisão de muitos trabalhadores alentejanos e de muitos estudantes indignavam-me.
Esta era a saída natural, outra não era possível...durante anos fizera conjecturas, conversara com muitos amigos que tinham familiares no estrangeiro. Sabia-se que nalguns países era possível pedir asilo político e ainda receber uma bolsa de estudo. Sabia-se que a França e outros países nos recebiam e não nos reenviavam. Os contatos com o mundo universitário davam-nos uma ideia tolerante do resto da Europa onde claro a Espanha de Franco também não se enquadrava.
Uma viagem à Europa em 1965 com a família permitiu-me contactar com um mundo diferente do nosso, em Itália e França ficámos deslumbrados com a liberdade de imprensa e a propaganda política que era visível por toda a parte, apelando à luta, fazendo eco das mais variadas reevindicações dos trabalhadores. Além da propaganda política era visível propaganda sindical. Na Suiça, eu e o meu irmão tivemos contactos com jovens exilados portugueses que nos encheram de propaganda política para trazermos para Portugal.
Cada pequeno gesto era uma caminhada e aquilo que nos outros paises era o dia-a -dia, para nós era uma luta dolorosa e constante que colocava a nossa imaginação à prova, as nossas forças e até a nossa capacidade de fazer humor.
E foi assim que essa propaganda chegou a Portugal. A descrição desse percurso faria uma outra crónica.
Idealizávamos a Europa como uma zona de tolerância e de liberdade e sabíamos que aí poderiamos continuar a luta política com certas reservas, não conhecíamos quais as reservas mas elas eram patentes em todas as conversas. Por outro lado, fazíamos todos os possíveis por permanecer no nosso País, na medida em que pudessemos desenvolver alguma actividade política legal, semi-legal ou mesmo ilegal. A ideia da partida estava na ordem do dia para os jovens da minha idade que tinham consciência política.
Era um imperativo ético e moral. Não colaborar com as políticas coloniais, não colaborar com o fascismo combate-lo por todos os meios e formas. Eram imperativos diários e de algum modo eramos obcecados por isso.
Muito jovem, a conferência de S. Vicente de Paulo, mais tarde o Cine-Clube e as tertúlias locais que frequentava foram a minha escola já que a verdadeira, o liceu, me aborrecia, fazia-me sentir infeliz por tanta indeferença para com o mundo exterior e tanta hipocrisia que inundava aqueles corredores que nunca mais acabavam.
As aulas expositivas, as “chamadas” e os “exercícios escritos” criavam-nos um estado de tensão permanente e cada um tentava encontrar escapes possíveis. Eu, pela minha parte acreditava que escondendo-me atrás do colega da frente e optando por um “low profile” como se diz agora, passava incólume. Evitar ser constantemente confrontado com aqueles saberes com os quais os professores insistiam em nos confrontar era uma luta diária. Nessas tais “chamadas” subíamos a um estrado e frente a todos íamos balbuciando umas respostas que ora divertiam os outros ora os enchiam de compaixão. A subida ao estrado era préviamente acompanhada pela abertura da caderneta do professor que passeava os seus olhos e olhares pelas folhas e pelos alunos com um ar divertido e persecutor. Era simplesmente aterrador.
Assim, num belo dia de 17 de Maio de 1967, dia do assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, pus-me a caminho no Sud Express a partir de Santa Apolónia com direccção a Paris, onde me esperavam o meu irmão e outros amigos. Foram dois dias e uma noite entre certezas e dúvidas, mas com muita decisão na certeza de vir a encontrar um mundo melhor e poder colaborar para tornar o meu Portugal um país diferente.
Entre este episódio e o 25 de Abril de 1974 passaram sete anos, sete longos anos de transformações mundiais, o fim da guerra do Vietenam, a revolução cultural na China, o Maio de 68, o fim da Primavera de Praga e a chegada do Homem à Lua.
Por cá caira o Salazar, vivera-se o Marcelismo, houve a greve da carris e outras e as inundações provocadas pelas enxurradas da noite de 25 de novembro de 1967 que criaram uma onda de solidariedade entre os estudantes e a população. O Papa recebera os dirigentes dos partidos da luta de libertação das colónias e o país estava cada vez mais isolado do mundo.
Nesse dia, no 25 de Abril de 1974 chegara ao centro de onde trabalhava e logo o Didier, um jovem utente da formação profissional, me alertou para uma revolução em Portugal. Creio lembrar-me que ele me esperava impaciente no portão do Centro de Formação.
O resto do dia passei-o a tentar saber notícias através das rádios e durante o dia ainda tentei sem efeito telefonar para Portugal. As reportagens sobre Portugal iam pouco a pouco revelando dia após dia o verdadeiro caractér do 25 de Abril e o 1º de Maio foi transmitido em directo para França. Em grupo assistimos eu, a minha mulher e amigos de Baleizão a essa transmissão em directo. Ver e ouvir aquele mar de gente numa manifestação nunca vista antes em Portugal era um incentivo ao meu regresso agora com a mulher e um filho. Do pensamento ao acto foi um ápice. Nessa mesma tarde fui ao Quartier Latin percorrer os muitos cafés onde pairavam normalmente os portugueses para trocar impressões, mas só encontrei o Adolfo Ayala que, no número 93 do boulevard Saint Michel, embalava os seus pertences que fora acumulando depois de muitos anos de exílio da Argélia em França. Perguntou-me, quase indignado, porque ainda ali estava enquanto separava os pertences que pretendia levar e aqueles que era obrigado a abandonar. Ofereceu ao meu filho um porta chaves, um elefantezinho de madeira que ele iria guardar anos a fio e despedimo-nos fazendo votos de nos encontrarmos em Lisboa.
No dia seguinte, depois de um dia atribulado para obter um passaporte no consulado, pudemos embarcar num avião repleto de portugueses exilados. Chegámos na madrugada do dia 3 de Maio. À cautela elaboramos uma lista com nomes e moradas de familiares de todos os que iam no avião não fosse acontecer algum problema à chegada e a minha mulher ficou fiel depositária dessa lista, o que a aterrorizou.
Depois, depois tudo se precipitou, o avião aterra e antes de qualquer transporte chegar para nos levar ao aeroporto, essa turba de exilados desata a correr invadindo o aeroporto onde somos recebidos de braços abertos pelos militares que guardavam a zona das chegadas. Um dos nossos trazia um molho de cravos vermelhos que destribuiu por todos. Às tres da manhã do dia 3 de Maio de 1974 passaram-se estes episódios, para que conste.
Muitos exílios terminaram aqui, um mar de lutas e algumas desiluções iriam recomeçar...
jr